Os homens europeus descem sobre Marrocos com a missão de recrutar mulheres.
Nas cidades, vilas e aldeias é afixado o convite e as mulheres apresentam-se no local da selecção. Inscrevem-se, são chamadas e inspeccionadas como cavalos ou gado nas feiras. Peso, altura, medidas, dentes e cabelo, e qualidades genéricas como força, balanço, resistência.
São escolhidas a dedo, porque são muitas concorrentes para poucas vagas. Mais ou menos cinco mil são apuradas em vinte e cinco mil.
A selecção é impiedosa e enquanto as escolhidas respiram de alívio, as recusadas choram e arrepelam-se e queixam-se da vida. Uma foi recusada porque era muito alta e muito larga.
São todas jovens, com menos de 40 anos e com filhos pequenos. Se tiverem mais de 50 anos são demasiado velhas e se não tiverem filhos são demasiado perigosas. As mulheres escolhidas são embarcadas e descem por sua vez sobre o Sul de Espanha, para a apanha de morangos.
É uma actividade pesada, muitas horas de labuta para um salário diário de 35 euros. As mulheres têm casa e comida, e trabalham de sol a sol.
É assim durante meses, seis meses máximo, ao abrigo do que a Europa farta e saciada que vimos reunida em Lisboa chama Programa de Trabalhadores Convidados. São convidadas apenas as mulheres novas com filhos pequenos, porque essas, por causa dos filhos, não fugirão nem tentarão ficar na Europa. As estufas de morangos de Huelva e Almería, em Espanha, escolheram-nas porque elas são prisioneiras e reféns da família que deixaram para trás.
Na Espanha socialista, este programa de recrutamento tão imaginativo, que faz lembrar as pesagens e apreciações a olho dos atributos físicos dos escravos africanos no tempo da escravatura, olhos, cabelos, dentes, unhas, toca a trabalhar, quem dá mais, é considerado pioneiro e chamam-lhe programa de “emigração ética”.
Os nomes que os europeus arranjam para as suas patifarias e para sossegar as consciências são um modelo. Emigração ética, dizem eles.
Os homens são os empregadores. Dantes, os homens eram contratados para este trabalho. Eram tão poucos os que regressavam a África e tantos os que ficavam sem papéis na Europa que alguém se lembrou deste truque de recrutar mulheres para a apanha do morango. Com menos de 40 anos e filhos pequenos.
As que partem ficam tristes de deixar o marido e os filhos, as que ficam tristes ficam por terem sido recusadas. A culpa de não poderem ganhar o sustento pesa-lhes sobre a cabeça.
Nas famílias alargadas dos marroquinos, a sogra e a mãe e as irmãs substituem a mãe mas, para os filhos, a separação constitui uma crueldade. E para as mães também.
O recrutamento fez deslizar a responsabilidade de ganhar a vida e o pão dos ombros dos homens, desempregados perenes, para os das mulheres, impondo-lhes uma humilhação e uma privação.
Para os marroquinos, árabes ou berberes, a selecção e a separação são ofensivas, e engolem a raiva em silêncio.
Da Europa, e de Espanha, nem bom vento nem bom casamento. A separação faz com que muitas mulheres encontrem no regresso uma rival nos amores do marido.
Que esta história se passe no século XXI e que achemos isto normal, nós europeus, é que parece pouco saudável. A Europa, ou os burocratas europeus que vimos nos Jerónimos, tratados como animais de luxo, com os seus carrões de vidros fumados, os seus motoristas, as suas secretárias, os seus conselheiros e assessores, as suas legiões de servos, mais os banquetes e concertos, interlúdios e viagens, cartões de crédito e milhas de passageiros frequentes, perdeu, perderam, a vergonha e a ética.
Quem trata assim as mulheres dos outros jamais trataria assim as suas.
Os construtores da Europa, com as canetas de prata que assinam tratados e declarações em cenários de ouro, com a prosápia de vencedores, chamam à nova escravatura das mulheres do Magreb “emigração ética”.
Damos às mulheres “uma oportunidade”, dizem eles.
E quem se preocupa com os filhos?
Gostariam os europeus de separar os filhos deles das mães durante seis meses?
Recrutariam os europeus mães dinamarquesas ou suecas, alemãs ou inglesas, portuguesas ou espanholas, para irem durante seis meses apanhar morango? Não.
O método de recrutamento seria considerado vil, uma infâmia social. Psicólogos e institutos, organizações e ministérios levantar-se-iam contra a prática desumana e vozes e comunicados levantariam a questão da separação das mães dos filhos numa fase crucial da infância.
Blá, blá, blá.
O processo de selecção seria considerado indigno de uma democracia ocidental. O pior é que as democracias ocidentais tratam muito bem de si mesmas e muito mal dos outros, apesar de querem exportar o modelo e estarem muito preocupadas com os direitos humanos.
Como é possível fazermos isto às mulheres? Como é possível instituir uma separação entre trabalhadoras válidas, olhos, dentes, unhas, cabelo, e inválidas?
Alguns dos filhos destas mulheres lembrar-se-ão.
Alguns dos filhos destas mulheres serão recrutados pelo Islão.
Clara Ferreira Alves
2 comentários:
Infelizmente na dita Europa (Mundo) civilizado do século XXI a escravatura é ainda uma triste realidade. Pode ter mudado de nome, de forma, de países, de povos, mas a essência da escravatura continua infelizmente no nosso dia a dia.
Exactamente, a escravatura sempre existiu e existirá, com outros nomes/formas, mas fará sempre parte da civilização como um dos piores e mais vergonhosos crimes contra a Humanidade...
É o dinheiro que manda neste belo planeta!
É muito triste mas é a realidade...
Enviar um comentário